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Foto do escritorLarissa Morangoni

Sobre ser fogo




Seguindo as postagens sobre elementos constituintes da natureza (já foram explorados o éter / espaço e o ar / vento) e o que podemos aprender com eles, trato aqui sobre o fogo.


 

O fogo para a Ayurveda


Fogo é um elemento de intensidade, poder, transformação, crescimento direcionado e auto-sustentável. O fogo ilumina, aquece, divide sem perder força, nem tempo de vida.

Ser fogo é ser empreendedor, idealista, enérgico, organizado, líder, vívido, curioso, com muitos interesses, caloroso.


O fogo no nosso corpo (agni, o fogo digestivo) é responsável pelo nosso metabolismo, pela transformação do alimento em energia vital, do tóxico em não-tóxico. Está relacionado também com a recepção dos estímulos externos e sua acomodação tolerável pelos órgãos do sentido: acomoda o som, os cheiros, a visão, a dor, o gosto.


Na vida de um indivíduo, fogo é o elemento que alimenta as descobertas, o caminho do conhecimento, o trabalho primoroso, as realizações pessoais, o aprimoramento de habilidades, a auto-regulação, a manutenção das conquistas.


No alimento, está presente nos temperos, na pimenta, na fritura.


Se em excesso na constituição de um indivíduo, resulta em irritabilidade, crítica exagerada, controle excessivo, comportamentos reativos e explosivos, tendência a agressividade, muitas inflamações (gastrite, acne, inflamações intestinais), pele avermelhada e oleosa, aumento da sudorese.


Entender como equilibrar o fogo é fundamental para alcançar sua potência transformadora e regulatória, sem viver o mal da sua falta ou excesso.


 

O início da relação do homem com o fogo


O fogo foi a primeira energia natural usada pelo homem de maneira intencional. Inicialmente, sua potência transformadora para cozinhar alimentos, produzir calor e proteção era manuseada quando algum raio incendiava uma região. Era, portanto, uma eventualidade.


Foi o Homo Erectus que, pela primeira vez na história, presenciou a produção de fogo pela fricção de pedras. Era o conhecimento que faltava para se tornar independente dos fenômenos naturais e acionar esse recurso sempre que necessário.


O fogo é de uma importância enorme para nossa manutenção como espécie. O filme “O Náufrago” mostra um retrato interessante do que significa o uso desse elemento para nossa vida como conhecemos. Eu ainda me lembro da sensação de alívio / estranheza compartilhada com o personagem principal quando, após ser resgatado de longos quatro anos vivendo isolado em uma ilha, acende novamente um isqueiro com facilidade.


A garantia do seu controle hoje, no mundo externo, frequentemente dessensibiliza nossa gratidão por sua presença.


No mundo interno, em nossa constituição individual, acontece o mesmo. Reconhece sua influência dominante quem sofre por seu desequilíbrio.


Conhecer o fogo no contexto pessoal é um passo significativo para planejar uma transformação desejada, promover a ação organizadora e manter o crescimento alcançado.


Destaco aqui uma informação importante: o fogo surge de atrito, impacto, agitação, movimento.


 

Grandes mudanças são possíveis?


A ciência nem sempre pôde garantir que grandes mudanças individuais fossem possíveis. Um estudo marcante no contraponto dessa informação foi em Minnesota, com gêmeos.

Vou abordar o estudo, porque ele guarda crenças de inevitabilidade genética que são distorções comuns e podem existir em você.


Publicado em 1990 por Thomas Bouchard – “Fontes de diferenças psicológicas humanas: o estudo de Minnesota sobre gêmeos criados separadamente”, esse estudo analisou aspectos fisiológicos e psicológicos de gêmeos homozigóticos (com informação genética idêntica) e dizigóticos (com informação genética diferente) que foram criados juntos e que foram criados separados desde muito cedo. O estudo relatou alta chance de encontrar similaridades entre gêmeos dos dois grupos, o que daria maior crédito para a informação genética do indivíduo em detrimento de contribuições ambientais (externas).


Esse estudo ficou famoso, tornou-se referência para muitas crenças deterministas, mas merece e recebe muitas críticas bem formuladas. A primeira em relação ao seu formato. Apesar de ter estudado gêmeos homo e dizigóticos, nunca publicou a comparação com os dizigóticos, o que seria fundamental para considerar (e então descartar de fato)as influências ambientais na formação global desses indivíduos. Os dados ocultados seriam uma manipulação de resultado.


Outro ponto, é que esse estudo foi patrocinado por uma importante empresa de serviços genéticos que apóia movimentos segregacionistas e de diferenciação racial. Seus resultados vêm sendo usados para enfraquecer políticas de intervenção em desenvolvimento humano, baseados na falsa premissa de que se o comportamento é principalmente determinado pela genética, não há o que contribuir para moldar pessoas mais habilidosas, inteligentes e colaborativas.


Felizmente, existe uma forte vertente de estudos que mostra resultados muito diferentes. Acredita-se, com bom consenso, que mudanças são possíveis! E são muito desejadas!


Ainda da década de 90 vários estudos apontam para a neuroplasticidade: capacidade do cérebro de ser moldado pelo uso durante toda a vida. Esse conceito, fortalecido pela evidência de que novos neurônios também surgem na idade adulta, permite a esperança realista de transformar o cérebro segundo nosso desejo, pelos nossos hábitos.


Falo de mudança real, com alterações nas estruturas cerebrais! Exames de imagem provam essas alterações.


E quando falo em transformação, falo em fogo!


 

Fogo por fricção


Acende pela persistência diante do desconforto, pelos rituais / repetições, incorporação de hábitos.


Um excelente exemplo de transformação por insistência (fricção) é desenvolver o hábito da meditação. Seria o hábito de manter atenção focada no momento presente, em atitude receptiva e não julgadora, com gentileza e apreciação.


Um estudo de imagens cerebrais funcionais, sobre alterações estruturais no cérebro de praticantes de meditação, publicado na revista “Neuroscience and Behavioral Reviews” de 2014 destaca as áreas cerebrais mais alteradas pela prática da meditação: regiões chave para a metaconsciência e introspecção, consciência corporal pelos órgãos do sentido e sensibilidade interna, consolidação e reconsolidação da memória, auto-regulação e regulação de emoções e, finalmente, comunicação intra e inter-hemisférica. São regiões de alto comando, fundamentais para deliberação consciente de comportamentos amadurecidos.


Como acontece com os músculos quando treinados regularmente, o cérebro de um praticante de meditação fica visivelmente bem condicionado para as funções que exercitou com frequência.


O fogo por fricção pode ser cansativo, por vezes desgastante, mas é uma maneira segura de obter a transformação desejada com autonomia.


A mudança é lenta, mas a progressão é consistente.


 

Fogo por raio


Outra importante maneira de viver transformação é mais aguda, após um estímulo externo intenso e drástico: o trauma.


Estamos sujeitos a algumas situações inevitáveis que podem superar nossa capacidade de tolerância e adaptação imediata. Podem ser catástrofes naturais, perda de pessoas importantes, violências sofridas de diversas formas, grandes mudanças da rotina (como propõe uma pandemia), ou qualquer estressor intenso o suficiente para causar sofrimento disfuncional.


Nem sempre nossos recursos mentais e sociais conseguem manejar bem e de imediato esses desafios. Sofrer é humano! Todos passamos por isso.


Mas raio (trauma) pode ser excelente fonte de transformação positiva também.


É muito estudado por uma vertente da Psicologia Positiva o conceito aplicável de Crescimento Pós-Traumático. Esse conhecimento propõe uma alternativa possível para a vivência de grandes traumas: mudanças desejáveis na mentalidade e comportamentos de um indivíduo, motivadas por um evento estressor grave. Para além de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que é um transtorno muito disfuncional e difícil de tratar, é possível viver mais que a anulação dos danos.


É possível crescer, amadurecer a percepção de si, das próprias competências, desenvolver novas habilidades, perceber melhor sua comunidade, aproximar-se das pessoas de maneira empática, colaborativa e confiante, ter mais qualidade de vida, mais saúde global, ter perspectiva mais ampla e transformadora para si, para a própria família e outros contatos próximos.


Um eventual trauma, que acontece contra nosso desejo, pode resultar em uma transformação aguda apreciável, com maior senso de propósito e significado.


 

Fogo transforma e espalha


Buda tem uma frase que me inspira muito: “milhares de velas podem ser acesas por uma única vela e sua vida não será encurtada”.


O fogo se divide sem perder intensidade, nem tempo de vida. É acréscimo para quem dá e para quem recebe.


Um indivíduo empoderado pelo fogo consegue iluminar, aquecer e mudar seu entorno. É a figura do líder transformacional.


A liderança transformacional é movida por uma pessoa que faz vínculo aberto e receptivo com seus colaboradores, incentivando o compartilhamento de idéias, criatividade, participação em postura ativa, engajamento com propósitos comuns de longo prazo e disposição pessoal para responsabilizar-se pelos riscos.


É um tipo de gestão que inspira o líder e os colaboradores a buscar mudanças possíveis e desejadas. Cada indivíduo iluminado, fortalece a iluminação do grupo.


Esse modelo de liderança pode acontecer no esporte, no ambiente acadêmico, familiar, religioso, organizacional, nas redes sociais, qualquer relação interpessoal.


Um exemplo importante para mim foi o do treinador de futebol das crianças tailandesas que ficaram presos em uma caverna durante uma forte tempestade em 2018. Ele era o único adulto e liderava um grupo com 12 meninos. Sem qualquer fonte de luz e muita limitação de recursos nutricionais, conduziu o grupo com calma e sabedoria para a prática de meditação. Sabia que a melhor chance de sobreviverem seria pela percepção transformada das próprias necessidades.


O exercício de tolerar com tranqüilidade o desconforto foi fundamental para permanecerem vivos em escassez de recursos externos e para serem transportados em condições muito críticas para fora da caverna inundada. Na umidade extrema e no escuro total, dominou o fogo de um homem iluminado que soube se espalhar e proteger seu grupo.


 

Fogo se alimenta do seu próprio calor


Para qualquer projeto de mudança é preciso entender se a energia investida vai se sustentar, porque o processo é desconfortável, desafiador e desgastante, mesmo quando a motivação é aguda. Precisa haver renovação consistente.


Qualquer transformação começa com desejo genuíno dela acontecer. Para entender melhor um desejo, cito o trabalho de Langer e Thompson dos anos 80. Eles conduziram um estudo de intervenção com alunos voluntários do campus que começava com duas perguntas. A primeira era se o aluno desejava se livrar de alguma característica considerada negativa (como rigidez, ingenuidade e severidade, por exemplo). Depois, perguntavam se ele conseguia ser bem-sucedido quando tentava.


Em uma segunda etapa, perguntavam o quão importante era uma determinada característica geralmente considerada positiva para eles (constância, confiabilidade e seriedade).


Com as respostas em mão, perceberam que os alunos que consideram a característica positiva muito importante tinham menos chance de mudarem a negativa relacionada (rigidez - constância, ingenuidade – confiabilidade, severidade – seriedade).


O que o estudo conclui é a necessidade de entender a fundo a razão que sustenta uma característica negativa. Quais valores desejáveis estão associados e mantém esse padrão de comportamento. Se o indivíduo valoriza muito a constância / consistência, é muito mais desafiador que ele aceite a flexibilidade. Mas é possível, especialmente quando tem consciência dos fatores complicadores, essas fusões conceituais.


Um bom exemplo disso é a comum dificuldade de dizer “não”. Existe uma ligação forte de compreensão de empatia, generosidade e prontidão com o “sim”. Mas se eu separo esses sentidos com realismo, é fácil entender que muitas vezes o “sim”dado a alguém é um “não”dado para si mesmo (negligenciando a própria necessidade de empatia, generosidade e prontidão.


É possível expor o limite de maneira empática, limite e empatia não são palavras aversivas, mas essa compreensão demanda esforço adequado para analisar as nuances possíveis de fusões conceituais. Elas não costumam ser evidentes.


Assim que se conhece o desejo genuíno, com suas motivações e desafios, manter a sustentabilidade do fogo é um resultado mais provável.


 

Sobre ser fogo: transformar, regular, iluminar, aquecer, espalhar-se com organização, dividir-se sem perda, estar sempre direcionado para crescimento, ser sustentável.

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