Texto meu de 2008 sobre a construção do feminino na sociedade brasileira.
Mudança fértil
A mulher nasceu como uma protegida - entende-se escondida - semente de angiosperma. Guardava em si a fertilidade existencial, todos os seus sonhos preservados por um resistente tegumento que só se manifestava por efetivo, se chegasse a tanto, quando já debaixo da terra. Com o tempo foi transmutando, à medida que se percebia, e então era concebida como um atributo diferente.
De semente viu-se flor. As mulheres resguardadas ao impenetrável mundo do próprio lar passaram a ser ostentadas por seus proprietários maridos e se tornaram adorno de varanda, com seus atrativos femininos vindos da Europa – perfumes, rendas, pinturas e jóias – posando de óvulo à espera dos núcleos espermáticos do marido. Função específica: ser vistosa para incentivar a polinização.
Passados séculos, a mulher resolveu que só varanda era pouco e que muita renda dava calor. A flor virou fruto, a mocinha européia forjada ficou mais tropical. A partir de então passou a ganhar seu espaço com maior autonomia, mas de certa forma ainda patriarcal. Sendo fruto tinha mais liberdade, entretanto ainda era mero objeto sexual, vista como inferior, inofensiva aos homens na disputa por espaço, principalmente no mercado de trabalho. Em todo caso, o primeiro passo estava dado passou a ser cada vez mais evidente a busca pela valorização do feminino.
Nos anos 70, a mulher fruto concretizou a mudança maior. Entrou como árvore completa para a vida funcional do país. Conquistou os palcos, moveu multidões em coro, atacou de médica muito bem representada por Zilda Arns, escritora, atriz, bailarina, cantora e aí vão mais Fernanda Montenegro, Nise da Silveira, Rachel de Queiroz, Chiquinha Gonzaga, Elis Regina, Ana Botafogo e tantas outras.
É como árvore plena que a mulher se firmou para os tempos que virão. Lembrando Descartes, atacou os galhos, o tronco, as raízes, passou a ter acesso à medicina, à mecânica, moral, física e metafísica. Desenvolve-se como flor, fruto, semente e indivíduo completo. Que mantenha os frutos!
O texto antigo captura alguns aspectos do tempo que aprecio muito: a transformação transgeracional e a transformação pessoal.
Noto pela escrita minha linguagem crítica e, por vezes, dura que já elaborei em minha vida para um pouco mais amena e terna, como gosto. Noto a inventividade, a ousadia, a costura em retalhos que guiam meu pensamento, características que cada vez mais tento reativar em mim, porque deixei dormentes nos últimos anos (durante minha formação médica tentei uma versão mais robotizada de mim, não é a minha preferida, mas me pareceu necessária).
É notável também o gosto que tenho de comparar a vida humana com os elementos e ciclos da natureza. Não tinha consciência disso, mas hoje acredito com embasamento técnico na sabedoria integrativa de todos os elementos vivos.
Vemos a transformação física em nós pelo tempo de 13 anos que as separam. Não vemos, mas existe a transformação da raiz também.
Outro registro importante no texto é o processo evolutivo da revelação da mulher para si e para o olhar público. Tenho uma sorte imensa de ter sido precedida e ensinada por mulheres que estiveram sempre na linha de frente dessa caminhada para expansão de fronteiras. Nas fotos estão comigo minha avó materna e minha mãe, mulheres fortes, intuitivas, corajosas e inventivas. Tento avançar com elas, como elas, rumo às mudanças férteis que ainda precisam acontecer!
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