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Foto do escritorLarissa Morangoni

Sobre a terra e a vovó Isaura


Segundo a Ayurveda, a terra é um elemento fundamental de constituição de todas as formas de vida e se manifesta pelas características de estruturação, forma, solidez, fertilidade de recursos, resistência, persistência, constância, doçura e amorosidade.


A terra é o elemento mais material, formador de sustentação. É onde a natureza se fixa, alimenta com fartura, cresce, transforma, reproduz e espalha. É onde a semente se enterra e germina. Também onde o fim recomeça.


A terra está na nossa constituição física pela estrutura dos ossos e músculos. É o continente do nosso conteúdo. É pelo elemento terra que manifestamos comportamento e intenção pela articulação consciente ou não dos grandes aos micro agrupamentos musculares. É referência de saúde pessoal e coletiva. É a estrutura de contato e construção.


Está nas proteínas e nos minerais, está no doce dos tubérculos, dos grãos e das frutas.


A terra permite manutenção de vida, persistência de esforços, constância fértil e nutritiva.


 

Assim era a vovó Isaura.


Uma mulher fértil, cheia de recursos, generosa, amorosa, doce, persistente, resistente.

Sua estrutura era curva, parecia frágil - como são as árvores do cerrado, onde nasceu e prosperou a nossa família - mas de maneira consistente, por 96 anos, promoveu recursos fartos e generosos para estruturar sua e outras vidas.



Sua resistência era tão consistente, que minha impressão pessoal era de que não haveria fim. Desafios de diversas ordens se impunham e, de alguma maneira nem compreendida por nós, ela se reestruturava em um novo formato e se mantinha. Acho que se sustenta aí minha forte fé nas realizações do improvável.


Com o tempo, a solidez foi ficando mais retorcida, desequilibrada e vulnerável, a fala se tornou uma vocalização de sons ainda compreensíveis pela entonação, os olhos foram perdendo contato, mas o toque nas mãos ainda acalmava e acolhia.


Vovó cedeu à forma que conhecemos no dia de Todos os Santos. Ainda me sinto nutrida e estruturada por suas lembranças.


Sobre empatia e generosidade: o que aprendemos escavando a terra.


Existe uma evidência histórica intrigante sobre o papel da empatia e da generosidade na nossa espécie. É do crânio de um indivíduo encontrado na região que hoje é a Geórgia, país na intersecção da Europa com a Ásia. Ele data de aproximadamente 1.8 milhões de anos, não é nem Homo Sapiens. O caso é notório, porque esse crânio tem desenvolvimento adulto sem evidência de ter tido dentes.


Os antropólogos entendem que a ausência de dentes o tornaram dependente do cuidado de outros para sua sobrevivência. Ele certamente precisou de ajuda e recebeu! Essa é a evidência mais antiga de que hominídeos cuidam daqueles que demandam esforços especiais.


A generosidade tem custo biológico em termos de gasto energético, então para essa característica ter sido mantida inclusive nos humanos é porque ela confere benefícios maiores que os custos.


O livro “Go Wild” do John Ratey e Richard Manning trata desta questão com uma proposta clara e simples de análise: o cuidado com nossos bebês!


Nossos bebês são incapazes de autocuidado por um tempo muito longo, mais longo que qualquer outra espécie que já existiu – provavelmente. Se formos rigorosos com o amadurecimento cognitivo, diríamos que por quase duas décadas o humano carece de um responsável por sua integridade e comportamentos. Isso não é nem remotamente parecido com o tempo de cuidados parentais em outros animais.


Não sabemos se essa maturação lenta e complexa seja causa ou conseqüência, mas está intimamente relacionada com o fato de termos cérebros grandes.


E tem mais: esse longo tempo de proteção e manutenção dos nossos jovens indefesos não pode ser exercido por um indivíduo só! Para começo a lactante exclusiva precisa ser nutrida e mantida por fonte externa. Além da nutrição entram as necessidades de atenção, proteção e ensino. Cuidar do outro é o elemento central da nossa necessidade intrínseca por cooperação e colaboração.


Manter a espécie é um trabalho difícil e articulado, demanda bom exercício de empatia, generosidade e comunicação. O grupo é a unidade de seleção natural, não é o indivíduo. As provas disso são indiretas, porque empatia é estrutural, mas não tem marca em ossos.


 

Quando o corpo padece.



Falamos muito sobre o quanto o pensamento e as emoções repercutem fisicamente no nosso funcionamento orgânico. Muitas vezes as ausências físicas podem ser preenchidas por desejo, fé e intenção.

Mas o corpo também tem influência direta na maneira como interpretamos os sentidos e programamos nosso comportamento. O corpo também constrói recursos de equilíbrio e reparação. Nosso corpo é uma organização milenar, portanto, bem-sucedida em sua perpetuação.


O movimento é o encontro do sentido mente-corpo com seu inverso. É no movimento que músculos moldam neurônios e neurônios articulam mais movimento. Quanto mais móveis, mais deliberados e maior o recurso para reparação. O corpo ativo justifica o cérebro grande e realizador.


Quando o corpo pára, minguam os recursos, os encontros, as colaborações. Ele sempre pára, mas às vezes há maneiras de postergar com qualidade o momento.


 

Vovó era movimento, até que parou.


A idade avançada costuma ser entendida pela Ayurveda como maior expressão do ar, porque cursa com mais leveza, frieza, escassez e separação. Tudo isso se fez presente, assim como sua espiritualidade natural, seu fogo curioso e realizador, sua água agregadora e purificante, mas nada foi mais presente em toda a sua vida quanto a terra.


Nunca conheci alguém tão sólido e resistente, tão fértil e generoso, tão doce e agregador. Mesmo quando foi se esvaziando do movimento.


Nunca presenciei tanto amor, fé e esforço pelas causas dos outros, mesmo quando essas causas já eram perdidas.


Sempre houve um jeito, uma misturinha, uma composição inovadora, um corante natural, um remendo, um sabor reconfortante, uma água benta, uma benzeção peculiar.


Sempre haverá jeito. Nossa existência é milenar.



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