Começo minha elaboração sobre a água logo após a primeira chuva de setembro. Ela veio mansa, logo no nascimento do sol, fazendo a abertura para a primavera. Já se nota a umidade mais agradável, um ventinho ameno, mas o céu ainda é cinza e embaçado.
Vem sendo uma temporada bastante seca e quente nos últimos meses. Muitas queimadas devastadoras, muitos acometimentos respiratórios, em especial o responsável pela atual pandemia.
Permanecemos em resistência, distantes uns dos outros, mas comemoramos juntos o amanhecer mais confortável de hoje. A chuva até mereceu seu lugar de destaque nos telejornais do dia.
É sobre a qualidade da água na nossa constituição que desejo explorar nesse texto.
Admito ser uma grande admiradora dela. Sempre me aproximei da água com alívio e apreciação. Sinto profundo equilíbrio e tranquilidade quando imersa em uma represa, de baixo de uma cachoeira, observando a chuva e tantos outros momentos de contato. Hoje entendo o motivo, mas a vitalidade experimentada já é uma velha conhecida.
O que é o elemento água? Como a água se manifesta em nossas vidas?
Água é um elemento de integração. Dentro da sabedoria Ayurveda, água compõe um espectro de qualidades entre limpeza e união.
Próxima do pólo fogo, a água acrescenta a limpeza, a força motriz para um trânsito de purificação. Pensando na característica transformadora do fogo, como é nosso metabolismo, a água facilita uma metabolização protetora, de desintoxicação. Constitui o sangue, permite volume de trocas e a formação do suor, da urina, das fezes, das secreções enzimáticas e lubrificantes.
Assim foi o papel da primeira chuva esta manhã, começou seu trabalho de purificação do ar, levando em fluxo o que estava em suspensão (fumaça, impurezas).
Próxima da terra, o elemento em contato com o outro pólo da água, temos a qualidade da união, integração, nutrição.
É fácil observar na natureza como a água torna a terra grudada, como junta os cabelos, como prega a roupa no corpo, como preenche e une os grãos que ela cozinha. O que acontece com o arroz se for cozido com muita água? O que acontece com duas poças de água se criarmos contato entre elas? A água une.
O glúten é um produto da presença da água trabalhada no trigo processado. Outros elementos têm propriedade de água na alimentação: a gordura e o carboidrato. Eles mantêm a união dos componentes, são essenciais na constituição de uma receita homogênea.
Na família, a água é o elemento de manutenção do contato, da união entre os membros. Geralmente é a figura materna / a maternidade, que aproxima e nutre a conexão.
Água em excesso é um problema. Cria vínculos muito dependentes, fusionados, adoecidos. Pode lavar tanto que promove escassez. Vemos o exemplo da chuva torrencial, do glúten em excesso causando irritação, aversão, mesmo naqueles que o toleram melhor.
Colaboração – elemento água nas relações
A colaboração é uma maneira específica de se trabalhar em conjunto. Exige três tipos de esforço concentrado: cooperação (agir intencionalmente em prol de uma meta), coordenação (sincronizar esforços e compartilhar recursos) e cocriação (produzir um novo resultado). Os três fundamentais. Ter um resultado produtivo, uma criação, é o que diferencia colaboração de ouros trabalhos em grupo para cumprir uma meta, ou reunir esforços apenas.
Colaborar envolve produzir em conjunto algo que não poderia ser criado sozinho.
É possível colaborar inclusive com alguém em oposição, com um adversário por exemplo. Jogos são ótimas oportunidades de colaboração.
Primeiro, estabelece-se a regra e todos os participantes, aliados ou não, concordam em cooperar com seu cumprimento para atingir a mesma meta.
Depois, ao longo do jogo, ocorre a coordenação da atenção e da participação de maneira sincronizada. Cada indivíduo depende do compromisso dos outros envolvidos para construir um desafio verdadeiramente interessante e árduo. Nesse ponto, firma-se uma consideração mútua com a qualidade da disputa.
A manutenção de esforço mesmo quando se está em desvantagem honra o compromisso inicial com as regras e com a meta coletiva.
Juntos, os jogadores dão sentido e propósito aos seus esforços. Mesmo que alguém perca, a recompensa do processo é recíproca, porque houve envolvimento intenso, com desenvolvimento de experiência e aprimoramento de habilidades. O saldo final não anula as emoções e conquistas do processo.
Um ótimo exemplo é a rivalidade histórica entre Rafael Nadal e Roger Federer no tênis. Eles acumulam o maior saldo de vitórias e participação em final de grandes campeonatos. Suas torcidas são bem divididas, por vezes hostis, mas eles não perdem uma oportunidade de demonstrar respeito e apreciação - sabem o quanto um estimula e valida a excelência do outro.
“Admiro o estilo de Federer e aqueles que não fazem o mesmo é porque não sabem nada de tênis. Mesmo que você seja fã de outro tenista, precisa reconhecer a excelência e Federer é excelente em todos os sentidos”, disse Nadal em entrevista.
“O Rafa nunca desiste. Ele joga com a mesma intensidade do início ao fim em todos os jogos. Faz a diferença em relação aos outros” elogiou Federer.
Por que cooperamos?
Michael Tomasello, psicólogo do desenvolvimento e autor do livro “Why we Cooperate” explica o que percebeu ao longo de sua carreira como pesquisador de Antropologia Evolutiva no Instituto Max Planck. Segundo ele, uma das habilidades mais exclusivas do ser humano é a que ele chama de “intencionalidade compartilhada”.
Na prática, intencionalidade compartilhada seria a capacidade de participar, ao lado de outras pessoas, de atividades colaborativas com metas e intenções compartilhadas.
Conseguimos nos identificar como parte de um grupo, concordamos de forma voluntária e explícita com a meta coletiva e podemos entender como os outros esperam que façamos nossa contribuição em prol daquela meta.
O mais importante estudo dele nesse campo envolve crianças entre 2 e 3 anos de idade e jogos em grupo. Elas foram ensinadas a jogar juntas um novo jogo - específico para cada idade. Um dos pesquisadores entrava no jogo e agia contra as regras. Em todos os testes as crianças refutaram imediatamente o comportamento destoante e tentaram corrigi-lo para continuar o jogo como previsto pela orientação inicial. Essa reação e a facilidade para aprender a dinâmica cooperativa não acontecem com outras espécies socialmente inteligentes.
Temos o desejo e a capacidade intrínseca de cooperar, mas se não houver oportunidades suficientes para reforçar essa habilidade pró-social durante nossa formação individual, perdemos muito desse potencial, alerta Tomasello.
Para exercitar colaboração
Já ouviu falar sobre inquérito apreciativo? Surgiu nos anos 80 para romper com o modelo organizacional de intervenção focada no problema. Rompe também com toda a narrativa desestimulante que compõe a análise de problemas: caça aos culpados, competitividade acirrada, insegurança, sensação de ameaça, de desvalorização e de impotência. No processo apreciativo há valorização do inquérito também, mas para descobertas positivas. É promovido o diálogo livre e honesto entre todos os colaboradores, porque todas as perspectivas são importantes. Incentiva-se a colocação de experiências pessoais marcantes, identificação de qualidades individuais e de grupo e exposição de desejos e expectativas. O objetivo do diálogo apreciativo é detectar um sonho coletivo que motive a equipe a evoluir. Essa projeção pode e deve ser ousada, criativa, inovadora, corajosa e até improvável. Com informações de potências e um sonho compartilhado, entra o planejamento conjunto. Cada membro tem a liberdade de se responsabilizar pelo que gostaria de contribuir, considerando suas habilidades e conhecimentos únicos. O grupo organiza as funções concretas e exequíveis, com prazos justos e intenções claras. É a etapa de coordenação do trabalho. Por fim, coloca-se o projeto em ação de forma coesa e flexível, com disposição para eventuais mudanças. Considero o inquérito apreciativo um excelente modelo de gestão familiar, comunitária e de questões individuais. Consegue imaginar a aplicação? Conversas honestas, valorização de todas as perspectivas, poder sonhar o improvável, guiar o planejamento por forças e interesses, executar com flexibilidade.
Inquérito apreciativo em uso lúdico – Superstruct e EVOKE
Jane McGonigal, designer de jogos especialista em desenvolvimento de habilidades colaborativas é uma das responsáveis por esses dois jogos de realidade para prognóstico do futuro.
Superstruct foi lançado primeiro. Tem uma proposta muito interessante de provocar os jogadores a produzirem propostas inovadoras de superestruturas para gerir grandes problemas globais em potencial de urgência.
Superestruturar, para os engenheiros, é criar uma estrutura de fortalecimento em cima de uma já existente. O nome já indica a intenção do jogo: selecionar estruturas problemáticas de qualquer ordem de interesse e propor um modelo de reformulação eficiente sobre a base insuficiente.
Nas regras do jogo, para superestruturar qualquer questão o jogador deveria unir duas ou mais comunidades existentes que ainda não trabalham em conjunto, propor um plano de ajuda para algum problema grande e complexo, usar de recursos físicos e humanos únicos de cada um dos seus subgrupos e criar algo fundamentalmente novo.
A ideia pronta deveria ser publicada com todos os detalhes necessários para uma aplicação possível. Elas estão compiladas em artigos wiki e são muito interessantes.
Percebe aqui a aplicação do inquérito apreciativo? Pessoas são convocadas para pensar as questões que tiverem interesse de elaborar, é desejável que os planos sejam ousados e criativos, podem se organizar como quiserem e devem usar de recursos únicos e perspectivas diferentes para executar trabalhos de cooperação significativos e eficientes.
O projeto aconteceu por seis semanas e é considerado uma referência mundial no uso de jogos para promover engajamento coletivo em solução de ameaças globais reais.
Ele envolveu cerca de 100 países, mas uma parte importante ficou de fora: os países onde internet e jogos online ainda não são disseminados – especialmente países africanos.
Então surgiu o EVOKE, jogo que tem essencialmente a mesma proposta. Dessa vez, são dez semanas de “chamadas urgentes” para os jogadores se envolverem em desafios escolhidos pelo jogo. Primeiro eles são colocados em problemas de escala global, mas precisam agir em suas comunidades – escala local e real - e publicar a execução na internet para serem creditados e evoluírem no jogo.
A ideia é envolver o jogador em atividades que desenvolvam habilidades colaborativas, além de incentivar inovações sustentáveis. É um jogo que somou ao Superstruct com maior adaptação para locais onde a internet ainda é instável ou pouco acessível.
O EVOKE traz uma perspectiva mais ampla, envolvendo pessoas de mais lugares, com maior chance de surgirem propostas reais de colaboração para soluções globais – o que já está acontecendo.
Cocriação – do inquérito para a realização
Como pode notar, todos esses projetos colaborativos e de coordenação de trabalhos em cooperação têm um ojetivo claro: cocriação de soluções para o futuro.
Não por acaso, o Superstruct é uma idealização do Instituto para o Futuro, que reúne pessoas interessadas em fazer prognósticos de diversas áreas de interesse humano para propor iniciativas de proteção, reformulação e criação de uma realidade desejável. Jane McGonigal é diretora de jogos do Instituto.
Eles têm fornecido muitas contribuições científicas e dados projetivos importantes que são aproveitados por grandes empresas e governos. Prezam por algumas habilidade essenciais: competência para identificar e analisar sinais de mudança, ver além das restrições atuais para identificar novas possibilidades, aproveitar a visão retrospectiva para descobrir padrões de inovação e ruptura e elaborar projetos futuros que levem a ações possíveis.
A premissa mais importante para eles é a de que a melhor maneira de prever o futuro é criar ele.
Adoro essa perspectiva comportamental, proativa, autoral, criativa e coletiva. Primeiro levantar questões - fazer perguntas importantes, livres e desconfortáveis - depois pensar de forma conjunta, com múltiplas perspectivas em consideração, e por último, executar, transformar a realidade atual em uma desejável – pelo coletivo e para o coletivo.
É notável a presença do elemento água nessas propostas! União reforçada, com progressão fluida para promover limpeza, alívio e mais coesão.
Água mansa e pura, que lava e desperta o florescimento!
Texto incrível