Construção de mim
Antes de falar sobre a minha experiência na faculdade de medicina, preciso dizer sobre como cheguei a ela. O meu processo de preparação para o vestibular tem uma tendência muito clara para mim: a de máxima robotização possível. Eu entendi nessa fase que quanto maior a minha disciplina, melhor o meu desempenho. Mas eu apliquei essa suposição com literalidade.
Eu tinha horários marcados para todo o dia, com detalhes de minutos. Cronometrava o estudo, as pausas, a alimentação, o banho, tudo. Todos os dias me serviam como oportunidade de condicionamento físico e mental para a prova. Eu evitava beber água para não precisar ir ao banheiro. Não levantava da cadeira por horas. O que desejo destacar dessa construção é que eu realmente fui perdendo contato com a percepção das minhas necessidades. Eu não parecia sentir fome, nem dor, nem desconforto, nem medo, nem tristeza, nem alegria. Eu me lembro claramente de não me emocionar com nada. Estava em suspensão.
Fui aprovada no ápice da minha robotização e isso me reforçou um padrão comportamental que eu demorei muitos anos para reconsiderar.
Na Faculdade
Quando entrei na faculdade, mantive a lapidação das habilidades que julguei mais adequadas para mim: autorregulação, prudência e persistência. Eu só não sabia que usar uma força em excesso é tão ruim quanto não a usar.
Minha autorregulação tornou-se negligência. Durante o curso, eu aprendi a orientar os outros com alguma competência sobre autocuidado, mas nem cogitava pensar o assunto quando aplicado a minha vida. Aos poucos, passei a comer alimentos cada vez mais processados, com quase nenhuma variedade de composição e sabor; a dormir sempre menos; a contar com minha caminhada de três quarteirões entre minha casa e a faculdade como única atividade física; e a ocupar todo o meu tempo com atividades acadêmicas, sem qualquer atenção ao lazer, a minha fé ou às relações que fugissem ao contexto do Campus. Eu me preparava para ser uma profissional da saúde, mas me afastava muito da minha saúde integral.
A extrema prudência virou paralisação. Eu exercia cautela com exagero. Naturalmente boa observadora, acumulava imensa quantidade de informação que eu mantinha sigilosa na minha memória. Não havia escape. Preferia manter o silêncio, o espaço, a ação pela não ação. Fazia contenção de pensamentos, emoções e comportamentos.
Acredito que a insegurança do processo de aprendizado, um perfil perfeccionista que não lidava bem com falhas e o frequente encontro com a crítica rígida daqueles que exerciam posição de ensino me moldaram excessivamente contida. Era uma contenção que me privava de expansão reflexiva. Eu repetia os exemplos que me pareciam mais adequados, mas não fazia elaborações sobre como eu gostaria que toda aquela teoria e práticas fossem manifestadas por mim.
A minha persistência, que me garantia esforço sustentado diante de desconforto, fazia a manutenção exaustiva das características anteriores. E, mesmo vivendo em tanta restrição pessoal, eu tinha bons resultados acadêmicos. Parece-me que a autonegligência e a extrema contenção eram esperadas de mim e valorizadas por quem convivia comigo. O retorno externo positivo alimentava a permanência da estratégia.
Habilidades desenvolvidas
Usando desse perfil comportamental, aprendi com meus professores e suas demandas que para ser uma boa médica eu precisaria desenvolver algumas habilidades específicas com prioridade.
A primeira seria estudar com boa crítica e intensidade uma grande extensão de assuntos. São muitas as fronteiras de conhecimento a serem exploradas, todas em constante avanço teórico e técnico à medida que se alcança mais acesso a novos instrumentos de medida e análise de dados.
Os textos são produzidos com uma frequência que não se publica em livros e a linguagem explora vocabulários extensos e muito específicos. São siglas seguidas por numerações que tendem a combinações infinitas. Toda essa quantidade de palavras e textos construídos sem intenção didática e muitas armadilhas semânticas, intencionais ou não. Desvencilhar de tantos obstáculos demanda senso crítico apurado e exploração ampla e constante.
Lembro-me de já no primeiro período ser surpreendida pela densidade dos livros. O primeiro impacto foi com os Atlas de Anatomia, quase sem texto. Achei que facilmente aprenderia aquela informação disposta em poucos parágrafos, até deixei acumular um pouco pra ter algum volume de informação para estudar. Mas eu certamente estava enganada.
Tenho lembrança vívida de passar horas lendo as poucas linhas, tentando entender a relação dos nomes com as estruturas, tentando perceber onde – precisamente – a pontinha da seta estava inserida no desenho. Era preciso analisar Atlas de autores diferentes para ter acesso ao maior número de estruturas possível, nem todas eram mencionadas. Também ajudava ver imagens diferentes para captar melhor outros ângulos. Esse era só o começo do processo de garimpagem de informação e ampliação de perspectiva.
Outra habilidade fundamental seria a de dedicar com muita atenção e disciplina minha energia para cuidar – como possível – dos meus pacientes. Aprendi a trabalhar com empenho mesmo quando as circunstâncias do adoecimento são de incerteza e quase sem amparo teórico disponível. Logo percebi que a teoria fica presa a ensaios empíricos tão controlados que não se encontra aplicação semelhante na realidade, essa cheia de vieses e fatores de confusão. Ainda noto como a vitalidade profissional é intensamente consumida no processo de adaptação do conceito para os casos reais.
Quando diante de problemas com tamanha complexidade como são os de saúde individual e coletiva, que demandam tanta adaptação, as condutas se apoiam nos detalhes. Nesse tópico, menciono a professora Tânia, da Patologia, com sua frase “usem olhos de ver”. Quando estávamos com muita dificuldade de perceber as discretas alterações macroscópicas das peças anatômicas que ela ensinava, logo dizia essa frase. Não me esqueço dela, porque precisei muito aprender a usar olhos de ver desde então.
Hoje eu entendo que toda captação sensorial precisa ser acompanhada de postura ativa e uma intenção perceptiva aguçada para de fato enxergar o detalhe além do que capta o olhar descuidado. Lembro de seus muitos exemplos pessoais, mas especialmente do tumor na pálpebra de uma paciente que morreu de melanoma sem que a equipe de saúde encontrasse a lesão inicial. Ela, claro, encontrou - “estava na cara”.
Os cenários de prática com participação acadêmica progressivamente maior mostravam outras importantes habilidades: a de respeitar incondicionalmente e a de confiar no improvável me parecem fundamentais e complementares. A aplicação dessas habilidades precisa acontecer na equipe em que eu estou inserida, nas outras equipes, nos professores, nos pacientes, nos acompanhantes e na comunidade onde as histórias se desenvolvem.
Cada personagem que participa do processo terapêutico tem o potencial de colaborar com perspectiva única na construção sempre aberta da narrativa de uma pessoa adoecida. Preciso reconhecer essa premissa e validar sua importância com permanente respeito às diferenças em cada colaborador.
Para existir coordenação produtiva do trabalho, além de respeitar preciso praticar o exercício constante de confiar e merecer confiança, mesmo quando a circunstância é muito desafiadora para a fé. Não se realiza cuidado efetivo sozinho, nem com desconfiança.
Vivi muitas situações em que tive dificuldade de acreditar no relato do paciente, ou de um familiar, ou de um colega, mas acabava recebendo alguma comprovação de que estavam falando a verdade e eu renovava minha fé. Isso aconteceu principalmente na minha residência de Psiquiatria, mas na faculdade também. Muitas vezes um relato de desconforto, ou estranheza inespecífica não são acompanhados por dados complementares compatíveis, mas uma busca mais aprofundada, ou a passagem do tempo acabam evidenciando o problema. É preciso acreditar para investir cuidado.
Tenho uma história familiar que me reforça muito a importância desse assunto. Meu avô materno era um homem muito ativo fisicamente e, por volta dos seus 60 e poucos anos começou a dizer que algo anormal estava acontecendo com ele. Muitos exames foram feitos, mas nada sinalizava alteração. Ele insistia na queixa, sabia que seu corpo não funcionava como o habitual. Era início dos anos 90, os recursos de imagem eram bem limitados e os profissionais ainda pouco experientes no seu manejo, mas com muita persistência e um ultrassonografista com “olhos de ver” foi encontrada a razão do desajuste. Era um tumor na cauda do pâncreas. A evolução já era muito danosa, não havia chance de cura.
Sobre acreditar no outro, penso que é uma decisão, porque nem sempre existe prova, garantia ou confirmação. Decidi ao longo do amadurecimento da vivência profissional que prefiro errar por ter acreditado a errar por ter duvidado. Sigo escolhendo assim e entendo que esse é o principal pilar para sustentar minha especialidade.
Outra habilidade em constante evolução que comecei a desenvolver na faculdade é a de ouvir com competência e empatia o outro e falar com o cuidado de ser compreendida.
Ouvir é mais que entender sons. É uma prática sutil de exercer percepção receptiva do audível e do não audível, dos gestos, das intenções, da postura e dos espaços. Além de receber, demanda elaboração aproximadora, sem julgamento, com checagem competente de compreensão.
A escuta e a fala devem surgir do interesse genuíno de colaboração, com investigação cautelosa e respeitosa do que o outro deseja expor. Nesse ponto, lembro-me de um relato do professor Jomar, da psicofarmacologia. Certa vez ele nos contou em sala de aula sobre um desconhecido na rua que lhe perguntou se queria ouvir um segredo. Ele é psiquiatra e estava programando sua aposentadoria do consultório, portanto, não aceitava mais casos novos. Ainda surpreso com aquela pergunta inesperada respondeu que não e seguiu seu caminho. Ele completou “não temos o direito de conhecer a história do outro se não temos intenção de participar do seu cuidado”.
Essa frase ainda é muito significativa para mim em todos os contextos da minha vida, especialmente o profissional. Só mereço a exposição do outro se de fato for me empenhar em colaborar com ele. E para de fato colaborar, preciso entender e ser entendida com clareza.
Falar bem, com precisão, não é só sobre usar as palavras certas, ou as mais específicas. É preciso considerar o interlocutor como parte tão importante quanto a mensagem. Nem é só uma questão de adaptação linguística, a mensagem precisa levar em conta o quão disposto e preparado o receptor está para receber meu contato. A comunicação efetiva considera o contexto, a intenção, a disposição e as palavras mais adequadas. Todos esses detalhes são lapidados com deliberação consciente, não são habilidades automáticas.
Sobre a mensagem que eu passo, onde minha intenção terapêutica está contida, aprendi que o conteúdo pertence à pessoa que recebe meu cuidado, não a mim. Ela decide o que deseja dividir comigo e com os outros. E nossa troca deve incluir as explicações na profundidade necessária para que essa pessoa tenha a capacidade de prosseguir com competência e consciência com seu próprio cuidado. Cuidar também é instruir, treinar e capacitar autonomia.
Compondo o arsenal de habilidades fundamentais aprendidas na faculdade, acrescento ainda a de elaborar planos terapêuticos com bom pragmatismo científico para trabalhar com consistência a qualidade e a velocidade de ação. Muitas vezes o menor tempo para intervenção está diretamente relacionado com melhor prognóstico. Vale enfatizar que entendo como bom pragmatismo científico também ser flexível com as demandas das pessoas e das circunstâncias.
Para finalizar, cito a habilidade de expandir o conhecimento de prevenção e promoção de saúde para aqueles que consigo acessar no meu círculo mais próximo de relações e nos contextos sociais que tiver a oportunidade de me inserir (pessoas cada vez mais distantes pelo uso das tecnologias de comunicação). Aprendi a importância de ser uma referência adequada e confiável sobre informações de saúde global.
Estudar, ter boa crítica, dedicar atenção e energia com disciplina, respeitar, confiar, merecer confiança, ouvir com empatia, planejar e agir sem causar mal, nem invadir, ou ofender ninguém, expandir com adequação a informação. Essa parte eu aprendi e sou muito grata.
Ainda acredito na importância de todas essas habilidades. Ainda trabalho para melhorá-las. Mas muitas outras competências e habilidades que valorizo hoje, eu não vi nos livros, nem nos meus professores, nem nos meus colegas e sinto que poderiam ter feito diferença na minha formação.
O que não aprendi na faculdade
Eu não aprendi a me ouvir, a dedicar a mesma atenção e disciplina para meu autocuidado, a me respeitar em muitos aspectos, especialmente os meus limites físicos, a me comunicar comigo com afeto e estímulo, sem me ofender e sem me causar mal. Eu não me servia dos meus conhecimentos mais complexos quando recebi minha certificação de aptidão para o cuidado médico dos outros.
Percebo hoje que fui formada para entender e orientar saúde, não para viver o conhecimento. Esse limite estabelece uma importante diferença entre a prática médica adequada e a prática médica de excelência. Viver com integridade o conhecimento que repasso para o outro habilita um nível de competência em intervenção que ultrapassa muito o alcance da fala esvaziada de experiência.
O princípio abordado aqui é o de que informação sozinha não transforma ninguém. Nem se houver muito boa intenção. É preciso viver a informação para ser afetado por ela e conseguir afetar. Todo processo terapêutico começa em mim.
Na prática, percebo que posso ser referência adequada em saúde global mesmo quando não tenho espaço de fala, só com meu exemplo. É possível ser terapêutica quando meu olhar e minha face são tranquilos e amáveis, quando meu funcionamento interno é harmonioso e estável, quando minha presença é segura e confiável. Minha potência profissional é muito mais completa e intensa quando meu corpo e meu comportamento se manifestam em coerência com minha orientação verbal, ou no lugar dela.
E não se pode manipular essa troca genuína com alguma técnica, ou preparação. A transmissão não-verbal do conteúdo interno é uma comunicação aberta e livre de intervenção. Felizmente, todo o conteúdo involuntário pode ser efetivamente trabalhado e transformado se houver desejo e esforço consciente. Então repito: o processo terapêutico começa em mim – isso eu não sabia.
O mais interessante dessa etapa da minha formação acadêmica de quase uma década de muita imersão em conhecimentos específicos (cerca de dez anos entre a preparação e a minha efetiva graduação) é que eu me distanciei de características pessoais que sempre me pareceram traços muito marcantes e funcionais em mim: a criatividade, a sensibilidade e a flexibilidade. A transformação em uma versão robotizada era consciente, parecia ser uma boa escolha, mas minha compreensão e deliberação hoje são diferentes.
Tornei-me mais dura, com menor vitalidade, menos confiante, algo perdida. Sempre soube que poderia me moldar como quisesse e tinha muito compromisso com desempenho de qualidade, mas as escolhas que fiz me conduziram a indisposição. Não sabia que toda a restrição de cuidado para mim acabava por me limitar para o cuidado dos outros.
Mas, com essa crença forte no possível e no improvável, na chance de mudança e elaboração, percebo que uma força minha se fazia presente, mesmo que eu nem tivesse consciência dela até depois da minha formação como Psiquiatra: a esperança.
Ter esperança é identificar com realismo os desafios, mas enxergar com entusiasmo um caminho para a realização. Essa visão consistente de boas possibilidades ainda é o que me mantém em resistência quando a circunstância não é favorável, ou mesmo muito difícil.
O que aprendi pela experiência relatada aqui foi que a esperança não se sustenta sozinha por muito tempo. Eu vivi a desvitalização dela progressivamente, à medida que a usava sem um bom suporte de autocuidado. Fui ficando exausta, me sentindo gasta e assustada.
Aprender a alimentar minha fé com bons nutrientes foi o elemento que me faltou na graduação. Só tive a maturidade de aproveitar o ensinamento do grande professor de histologia, Dr Gladstone, quando já exercia a profissão. Dizia ele “quem só sabe medicina, nem medicina sabe”. É fato.
Felizmente, fui protegida e resgatada pelos meus atenuantes (forças pessoais que existem mesmo sem consciência e intenção). Sem que eu pudesse evitar, por alguns anos a esperança aqueceu minha frieza emocional e corporal (eu quase não usava roupa de frio); iluminou meus projetos; fortaleceu minha confiança quando eu não tinha recurso, nem força física; sensibilizou meus olhos, meus ouvidos, meu olfato e meu tato quando me faltava experiência; protegeu meu corpo muito malnutrido, mal hidratado e mal condicionado; saciou minhas necessidades básicas quando eu me negligenciava; acompanhou meus caminhos enquanto eu andava sozinha pelo labirinto do hospital e ruas do entorno.
Também a autorregulação, a prudência e a persistência me colocaram em insistente e cuidadosa manutenção de estudo. O que não me parece suficiente como teoria e prática eu continuo lapidando, procurando, questionando. Hoje com mais sustentabilidade e equilíbrio, cada vez mais apaixonada pelo que faço. Encontrei vertentes científicas que me fortalecem como pessoa e como profissional.
Hoje eu sou Psiquiatra, especialista em Psicologia Positiva e estudo forças de caráter, potencialidades humanas e saúde integral. Entendo, por conceito e vivência, que sabedoria transcende conhecimento. Que de um jeito ou de outro, seja qual for o ponto de partida e a bagagem inicial, a direção pode ser repensada, o caminho está livre para deliberação e o processo da vida pode ser fértil e delicioso.