Na medicina
Baseio-me na publicação de Sayantani DasGupta para o Jornal Oficial da Academia Americana de Pediatria em 2007. Ela conta nesse artigo sobre uma aula muito importante que assistiu durante a faculdade de medicina do professor budista Robert Thurman. O assunto era o papel da meditação como facilitadora de aprendizados complexos. Ele ensinava sobre a habilidade de usar o silêncio interno / a quietude como ferramenta fundamental para o cuidado dos adoecidos.
Eu amei o artigo, os exemplos reais de narrativas feitas por pacientes e a sugestão de buscar nesses relatos autobiográficos reflexivos e reveladores subsídios para aprimorar a prática médica.
A autora sugere que ler esses textos seria como ter acesso ao “não dito”/ silêncio do dia a dia profissional.
Como os médicos costumam compreender o silêncio
No artigo, a autora lista maneiras específicas de cada especialidade para construir narrativas diante do silêncio: ela cita o cirurgião que lê o agravo do corpo anestesiado e aberto, o reumatologista que vê a coesão de dores inarticuladas, o geriatra diante da inevitável, progressiva e silenciosa narrativa da morte e o pediatra que lida com os que ainda não desenvolveram a fala e /ou os falantes imaturos para formulações complexas.
Acrescento o psiquiatra que decifra na expressão do rosto, nos gestos, na atitude, no movimento e na ausência deles uma compreensão de forma e conteúdo de sofrimento.
Aprendemos com rigor a entender os sons do corpo, a consistência e textura dos ógãos por palpação e percussão, o cheiro de fluidos e presença de alguns microorganismos, as cores esperadas e as alarmantes, os resultados de exames químicos, as imagens contrastadas, estáticas e funcionais.
Reunimos essas informações múltiplas, por vezes conflitantes, junto com suas respectivas histórias para narrar para o outro e para nós mesmos explicações coerentes e planejamentos possíveis de intervenção.
O que acrescento aqui, apoiada pelo professor budista, é que essa habilidade é apenas uma porção dos silêncios que compõe uma narrativa de cuidado. Existe o silêncio interno do profissional que também precisa ser explorado nesse contexto.
Fica claro que uma importante crise atual na qualidade do cuidado médico é a fragilidade justamente na construção de histórias. Perde-se cada vez mais o foco em dois elementos:
1- na escuta competente da fala do outro, que nem sempre é dita em palavras (com uso exagerado dos recursos complementares / silenciosos)
2- na escuta do silêncio em si (das sensações, emoções, pensamentos e memórias evocadas no profissional).
Para ouvir melhor a fala do outro
O médico vem se especializando em uma escuta muito invasiva, em “conseguir a história”, como se ela fosse um objeto a ser encontrado, ou conquistado. Uma atitude quase atlética de obter informações/ fazer descobertas. Essa abordagem trás muito dano para a compreensão precisa e aprofundada nessa comunicação.
Para a boa escuta é preciso compreender muitas nuances da fala do outro: as metáforas, o contexto, o enredo, a intenção e o ponto de vista. É necessário considerar que nem sempre se consegue nomear e entender o que se sente para contar de maneira clara e coesa. Você consegue explicar tudo que acontece com você no momento em que acontece?
Uma breve intervenção de busca estruturada por dados não possibilita essa percepção ampliada.
Testemunhar o relato de sofrimento do outro envolve também a disposição de ser afetado, ensinado, esclarecido, transformado. Vai muito além de só ser informado.
É uma proposta de abertura da relação terapêutica para voz ativa e passiva. É dividir o saber, com humildade e receptividade, sem julgamento, sem suposição de entendimento antes da explicação.
Como desenvolver essa habilidade de escuta ampliada e receptiva?
Sayantani sugere que os alunos de medicina primeiro aprendam a ouvir o seu silêncio, para depois aprender a ouvir as histórias de seus pacientes.
Para ouvir melhor o próprio silêncio
Outra marcante dificuldade do profissional médico é incluir seu complexo mundo mental para a relação profissional, não só a porção intelectual.
O que cada vez toma maior força nas práticas ocidentais, e já é sabedoria milenar na cultura oriental, é o exercício da meditação. Era o que o professor Thurman estava ensinando na Universidade de Columbia, como explicou Sayantani no artigo. Ele propunha o desenvolvimento da habilidade de estar atento no momento presente, em atitude receptiva e gentil, sem julgamento, para observar o próprio conteúdo mental / silêncio interno.
Durante a meditação, a quietude do corpo estimula a vigilância da mente e do espírito.
Ciente da forma e intensidade com que somos afetados por outra pessoa, é possível entender por reverberação o que está vivo no outro. Como a vibração que se sente no corpo quando um carro muito rápido passa perto de você, ou quando se está em um evento musical e as batidas da música vibram em você.
Mesmo separados por algum espaço, ou diante de um silêncio expresso pela linguagem dos olhos, dos músculos faciais ou da postura, se o indivíduo consegue sustentar atenção sensível aos estímulos presentes, sente em si as vibrações do outro e pode ajudar na compreensão ou tolerância da vivência do outro.
A médica e crítica literária Rita Charon chamou esse estado de ser de atenção, em que há um “esvaziamento de si para se tornar um instrumento de recepção do sentido do outro”.
Esvaziar-se não é anulação, ou negligência de si, ou superidentificação com o paciente, mas de fato se fazer parte constituinte do processo do outro pela escuta do todo. Ser continente para esse conteúdo também.
“Um homem. . . não pode se ver na água corrente, apenas em água parada. Pois apenas o que é em si quieto pode instilar quietude em outros. ” são palavras do antigo filósofo chinês Chang Tzu.
É preciso saber acessar sua quietude para poder refletir conforto e equilíbrio no outro. Falo aqui de mais do que conseguir uma história, diagnosticar e tratar sem causar dano, falo de alívio / conforto / apoio / compreensão verdadeiros.
O médico precisa ser habilidoso na escuta das histórias e dos diversos silêncios. Habilidoso nos procedimentos e na quietude. Na avaliação por contato e no espaço.
Quietude, silêncio e espaço na vida
Comecei relatando essas competências para o médico, mas são elementos presentes e necessários para todos.
Boa habilidade de comunicação, em qualquer contexto, demanda boa escuta de histórias e silêncios.
Existe uma metáfora taoísta que faz essa sugestão. É a metáfora da árvore inútil: uma árvore gigantesca, retorcida e nodosa, com madeira apodrecida e folhas fétidas. É aparentemente inútil, desprovido de frutas atraentes ou madeira durável. Atraindo pouca atenção, ela cresceu desimpedida, espalhando seus galhos para que pudesse abrigar milhares de cavalos pareados, ou pessoas sentadas em sua sombra.
A árvore inútil nega silenciosamente nossas obsessões pelo útil, pelo produtivo, pelo eficiente, pelo que vale a pena. Ela só existe, quieta e espaçosa. Sua presença é sombra e conforto para muitos.
O que entendo disso é que nem sempre temos recursos para agir de forma útil / transformadora para alguém, e isso inclui nós mesmos e os outros, nossa vida pessoal e profissional. Mas mesmo quando não há o que fazer, que nossa presença - quieta e silenciosa - possa ser expressiva e comovente.
Todos temos essa potência, mas nem sempre nos habilitamos para exercer presença colaborativa / ação pela não-ação.
Meditação é uma habilidade que pode ser desenvolvida por qualquer pessoa, de qualquer forma, no momento que se desejar começar. Ser presente é meditar.
Para aprofundar
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